A gravação já era uma ideia que todos sabiam ser poderosa, cruzando dois dos cearenses mais voluptuosos da MPB. Eles mostraram que o Nordeste não acaba na Bahia, dizia Ronaldo Bôscoli.

Estimulado pelo produtor Robertinho de Recife, Fagner já tinha um projeto de gravar um disco voltado às músicas feitas com Belchior. Era uma ideia que todos sabiam ser poderosa, cruzando dois dos cearenses mais voluptuosos da MPB. “Eles mostraram que o Nordeste não acaba na Bahia”, dizia Ronaldo Bôscoli. De fato, ao contrário de baianos, mineiros, paulistas ou pernambucanos, nenhuma geração de cearenses anterior ou posterior a eles fez o mesmo pelo Ceará. Mas veio a pandemia, outros trabalhos se sobrepuseram e Fagner levou o encontro póstumo com Belchior em banho-maria, até que o destino, ou um golpe de baioneta do passado, reacendesse suas vontades.

Ao passar por outros motivos pelo site do Sian, o Sistema de Informação do Arquivo Nacional, um depositário valioso, o jornalista e pesquisador Renato Vieira se deparou com duas letras assinadas por Fagner e Belchior. Ao serem encaminhadas para a análise da censura, as músicas Alazão, de Fagner, Belchior e Fausto Nilo, e Posto em Sossego, de Fagner e Belchior, feitas entre 1971 e 1972, não tiveram problema algum com os censores e foram liberadas, mas não chegaram a ser gravadas. Vieira farejou, confirmou e colheu o material. A descoberta virou notícia e Marcelo Fróes, produtor, fez com que as letras chegassem a Fagner.

UM BOLERO

“Foram as duas músicas que fizeram com que seguíssemos em frente com a ideia”, diz Fagner. O disco ganhou o nome de Meu Parceiro Belchior, cheio de histórias em cada canção. Elis Regina lançou duas delas: Mucuripe e Noves Fora. A Palo Seco traz a voz reaproveitada do próprio Belchior, cantando em um disco de Fagner pela primeira vez. Outra faixa, Bolero em Português, cantada por Amelinha, foi a última canção feita pelos dois amigos antes do afastamento e se tratou de uma homenagem a Angela Maria. “Estávamos vivendo juntos em uma quitinete na Rua Barata Ribeiro, no Rio, com cinco pessoas dormindo em duas camas. Fazer bolero não era com a gente, mas imaginei Angela Maria e fiz para ela. Não sei por que ela não gravou.”

Frejat canta Contramão não por acaso. Cazuza passa pela história de Fagner primeiro como divulgador de gravadora. Foi sua primeira profissão, antes de assumir-se como cantor de rock. “Ele divulgou meu álbum, Ave Noturna, e, depois, gravou Contramão comigo (lançada em 1985). É por isso que chamamos Frejat, tinha a ver com essa história.”

Xand Avião, empresário e ex-cantor do grupo de forró eletrônico Aviões do Forró, foi convidado para cantar Noves Fora, que já teve registros de Wilson Simonal e Emílio Santiago. Há ainda Galos, Noites e Quintais, de 1976, com Robertinho de Recife nas cordas, e Moto 1, de 1973. Paralelas, de 1975, e Mucuripe, foram captadas de registro ao vivo.

Aos 73 anos, que completa nesta quinta, 13, Fagner tem produzido bastante, sobretudo nos últimos dois anos. Ele conta ao Estadão que ainda tem um álbum de inéditas a ser lançado, gravado com Fausto Nilo, Zeca Baleiro e outros parceiros, preparado durante a pandemia. Há poucos meses, lançou um disco com Renato Teixeira chamado Naturezas, cantando também Mucuripe e ainda Tocando em Frente, Eu Só Quero Ser Feliz e Rastros da Paixão, com participação de Almir Sater.

“Eu tenho, praticamente, um disco inédito pronto. São músicas em parcerias com Fausto Nilo, Caio Silva, alguma com Renato Teixeira, certamente. E tem Erasmo Dibell, que me foi apresentado pelo Baleiro, é um maranhense fantástico. Ele está vindo morar em São Paulo. E também estou me empolgando muito com Caio Silva, o autor de Noturno (Coração Alado).”

De volta ao álbum sobre Belchior, como teria sido o resgate das melodias? Se as letras ficam intactas em papel, onde se guarda uma melodia que não foi gravada? “A melodia de Alazão já estava na minha cabeça. Eu só não gostava muito porque ela é muito rápida e me cansava. Sobre Posto em Sossego, eu me lembrei mais do começo e a linha melódica foi sendo construída.” Fagner diz que sua memória musical não se trata de um problema. “Ontem mesmo localizei uma letra que me foi presenteada pelo Millôr Fernandes e me lembrei da melodia que havia feito para ela.”

DUAS MORTES DE BEL

Sobre seu amigo Belchior, qual seria a sensação de colocar na praça um disco que nunca conseguiram fazer em vida, com a obra dos dois? Primeiro, Fagner fala de como considera “as duas mortes de Bel”, a primeira em vida, com seu desaparecimento do radar dos amigos, da família e da imprensa, e a segunda, em 30 de abril de 2017, sua morte física. “Só um cara tão genial quanto Belchior poderia ter esse dilema consigo mesmo.” Ele se refere a uma possível tentativa do amigo de romper com o próprio passado, eliminando um Belchior cantor que já não lhe interessava mais. “Esse disco se torna algo fundamental entre a gente. O que ele significou, o que eu signifiquei.” Sobre o rompimento que tiveram por divergências artísticas, Fagner prefere não se pronunciar. “Essas conversas sobre a nossa relação não interessam neste momento. Interessa é nossa parceria.”

O que explicaria o fato de Fagner e Belchior fazerem parte de uma geração de poucos cearenses a quebrarem a hegemonia de outras regiões, uma exposição nacional de uma região que não se repetiria nas mesmas dimensões depois daqueles anos 1970, Fagner avalia: “Nós fomos muito beneficiados pelo momento. A Tropicália, o Clube da Esquina e os Festivais da Record estimulavam essa saída. Viemos na hora certa, encarar a parada, e fomos muito ajudados aqui.

Cidinha Campos, Manoel Carlos, Carlito Maia, Elis Regina e Ronaldo Bôscoli. A Tropicália mostrava que podíamos buscar nossa história. O próprio Caetano me ajudou. Quando vi aquele cara tão raquítico, tão magrinho, fazendo o sucesso que ele fazia, eu disse: ‘Ah, então vai dar pra mim também’”. (As informações são do jornal O Estado de S. Paulo/Estadão Conteúdo - https://istoe.com.br/autor/estadao-conteudo/) – (Foto: Reprodução/Internet/(Mercado Livre)

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